Estado de Exceção e resistência - Educador critica ataque policial a escola do MST
Por Homero de Oliveira Costa – professor do Departamento de ciências sociais da UFRN | No dia 4 de novembro de 2016, policiais do Grupo Armado de Repressão a Roubo, do Departamento de Investigações sobre o Crime Organizado (GARRA/DEIC) de São Paulo, invadiu a sede da Escola Nacional Florestan Fernandes, do Movimento dos Sem Terras (MST), localizada no município de Guararema (SP). Segundo o MST “Os policiais pularam o portão da escola e a janela da recepção e entraram atirando em direção às pessoas que se encontravam no local. Os estilhaços de balas recolhidos comprovam que as armas usadas são letais”. A operação fez parte de ações que também ocorreram nos estados do Paraná e Mato Grosso do Sul. Para o MST “A Polícia Civil executa mandados de prisão contra militantes do MST, reeditando a tese de que movimentos sociais são organizações criminosas, argumento já repudiado por diversas organizações de Direitos Humanos e até mesmo por sentenças do Superior Tribunal de Justiça (STJ)”. No dia seguinte, ocorreu um ato de solidariedade às vítimas e a escola, com a presença de parlamentares, representantes dos movimentos populares e de sindicatos e contou, também, com a presença do ex-presidente Lula que destacou a importância de se criar "um movimento para estabelecer a democracia neste país". A Invasão foi considerada truculenta, arbitrária e ilegal (sem mandado judicial). A ex-presidente Dilma Rousseff também se pronunciou através de uma nota publicada em seu site e nas redes sociais, afirmando que o país vive um "Estado de Exceção" e condenou a ação policial. Para ela é "assustador que o retrocesso que vem ocorrendo no Brasil, iniciado com o golpe" e que "a invasão da escola (...) é um precedente grave. Não há porque admitir ações policiais repressivas que resultem em tiros e ameaças letais, ainda mais em uma escola". Segundo a ex-presidente, é inaceitável criminalizar o MST e que “não se pode conviver com cenas em que policiais submetem estudantes a algemas e ao cárcere. Isso é inadmissível em uma democracia".
A invasão da escola, no entanto, com o pretexto de combate ao crime, não foi um ato isolado. O que se tem observado no país é um perigoso crescimento de medidas próprias de Estado de Exceção, com o agravante de ser “naturalizada” na sociedade, sem perceber a gravidade da supressão paulatina de direitos assegurados na Constituição.
Mas, estamos vivendo num Estado de Exceção? Seu conceito tem origem jurídica e se refere a um fenômeno social específico: a suspensão do Estado de Direito... através do direito. A justificativa para a suspensão de direitos e garantias constitucionais é que a exceção pode ser possível em momentos de grave crise política.
O tema é complexo. Uma das referências fundamentais para compreendê-lo é a análise substancial que faz o filósofo italiano Giorgio Agamben no livro Estado de Exceção (publicado no Brasil pela editora Boitempo,em 2004). Resumidamente, ao abordar com profundidade questões relevantes como soberania, poder e violência, ele analisa como esse tipo de estado organiza as estruturas que legitimam a violência, a arbitrariedade e a suspensão dos direitos, em nome da segurança.
Num artigo em que denuncia as arbitrariedades policiais como a invasão da Escola Nacional Florestan Fernandes, o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos afirma que “Esta ação de intimidação e criminalização de um dos mais importantes movimentos sociais do Brasil e de todo continente, ocorre num contexto mais amplo de intensificação de ataques a direitos, impulsionado pelo recente golpe parlamentar, jurídico e midiático que culminou com uma troca ilegítima no comando do Executivo Federal e na adoção de uma agenda regressiva e conservadora levada a cabo pelo contestado governo atual”. E continua: “Nos últimos tempos no Brasil, repetem-se notícias e ocorrências de perseguições e criminalização de movimentos e organizações sociais, de cerceamento da liberdade de expressão e manifestação política por parte de artistas, estudantes e professores, bem como de desrespeito de direitos fundamentais, reforçando um quadro repleto de traços daquilo que temos denunciado amplamente como ‘fascismo social’.
O que se observa é um recrudescimento do Estado penal e de um processo de criminalização dos movimentos sociais que antecede este governo. No entanto, é fato que vão se acumulando ocorrências do emprego de medidas que sinaliza uma perigosa escalada antidemocrática. As violações à Constituição, as agressões à democracia se banalizam, ao retirar direitos e afrontar o Estado democrático de Direito, e desta forma, um Estado cada vez mais autoritário vai ganhando espaço, uma tendência crescente de suspensão do direito de reunião e de manifestação política e abuso de poder e de autoridade.
Um caso talvez emblemático foi a prisão e condenação do morador de rua Rafael Vieira. Numa matéria publicada no dia 4/12/2013 na revista Carta Capital, informa-se que ele foi o primeiro condenado dos protestos de junho de 2013 e deverá passar cinco anos preso porque carregava um frasco de desinfetante Pinho Sol e outro de água sanitária durante manifestação no centro do Rio de Janeiro no dia 20 de junho de 2013. Segundo a matéria “O juiz Guilherme Shilling Pollo Duarte acatou a denúncia do Ministério Público, que o acusava de “porte de aparato incendiário ou explosivo”. Para o juiz, em sua decisão sobre o perigo dos dois frascos plásticos, “a utilização do material incendiário, no bojo de tamanha aglomeração de pessoas, é capaz de comprometer e criar risco considerável à incolumidade dos demais participantes”. Ainda segundo a matéria, o laudo do esquadrão antibomba da Polícia Civil, feito após a detenção de Rafael, atestou que ele carregava produtos de limpeza. “[As substâncias têm] ínfima possibilidade de funcionar como coquetel molotov”. Mesmo assim, o Ministério Público seguiu entendimento de que se tratava de “material incendiário” e enquadrou Rafael no inciso III do artigo 16 do Estatuto do Desarmamento, que proíbe carregar ou usar “artefato explosivo ou incendiário, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar.” (...) Segundo a matéria, como a maioria da imprensa, o juiz também utilizou a diferenciação entre bons e maus manifestantes: “O fato ocorreu enquanto centenas de milhares de pessoas reuniam-se, pacificamente, para reivindicar a melhoria dos serviços públicos (...) naquele mesmo episódio verificou-se a presença da minoria, quase inexpressiva – se comparada com o restante de manifestantes – imbuída única e exclusivamente na realização de atos de vandalismo, tendentes a desacreditar e desmerecer um debate democrático”.
Para o cientista político Luis Felipe Miguel no artigo “Transição à ditadura”, escrito e publicado depois do impeachment de Dilma Rousseff, o país vive um momento de transição para uma ditadura: “Assim como sofremos um golpe de novo tipo, estamos vivendo o início de uma ditadura de novo tipo. Alguns talvez prefiram o termo ‘semidemocracia’, mas eu não acredito nesse eufemismo. O regime eleitoral já é uma ‘semidemocracia’, uma vez que a soberania popular é muito tênue, muito limitada. Estaríamos entrando, então, numa ‘semi-semidemocracia’. ‘Ditadura’ é mais direto, corresponde ao núcleo essencial do sentido da palavra e tem a grande vantagem de sinalizar claramente a direção que tomamos: concentração do poder, diminuição da sensibilidade às demandas populares, retração de direitos e ampliação da coerção estatal. Essa ditadura não será o regime de um ditador pessoal, até porque nenhum dos possíveis candidatos ao posto tem força suficiente para alcançá-lo. Não será uma ditadura das forças armadas, ainda que sua participação na repressão tenda a crescer. Provavelmente, muitos dos rituais do Estado de direito e da democracia eleitoral serão mantidos, mas cada vez mais esvaziados de sentido. Ou seja: a transição que vivemos é de uma democracia insuficiente para uma ditadura velada. As debilidades do arranjo democrático anterior, que era demasiado vulnerável à influência desproporcional de grupos privilegiados, não serão desafiadas, muito pelo contrário. Ao mesmo tempo, alguns procedimentos até agora vigentes estão sendo cortados, seletivamente, de maneira que mesmo o arranjo formal da democracia liberal vai sendo desfigurado”.
As violações dos direitos individuais são cotidianas. E, numa sociedade de classe, há o uso da violência de classe quando ao aparato estatal prende e condena majoritariamente os pobres. E o Brasil, como se sabe, já teve, ao longo de sua história, diversos momentos de exceção (ditaduras), de suspensão de garantias de direitos, em nome da Ordem, mudando a Constituição de acordo com a conveniência dos que estavam no poder.
A meu juízo, o fundamental é compreender que o Estado nas sociedades de classes, não é um estado neutro, mas um instrumento de dominação social. Um estado numa sociedade capitalista tem por fundamento a defesa da ordem capitalista, com seu aparato burocrático, jurídico e policial, defesa da propriedade privada dos meios de produção e das condições que garantam a acumulação de capitais. Desde sua formação, age combinando diferentes formas de garantias da ordem. A repressão, quando necessária, ou a busca da formação de consensos, com o objetivo de se legitimar.
Mas, mesmo numa sociedade de classes, existem Constituições, resultado de muitos embates na sociedade, que estabelecem garantias de direitos e embora preveja a possibilidade de sua suspensão, é de fundamental importância a luta pela manutenção de um Estado de Direito porque, mesmo nas sociedades classistas, recorrer à justiça é a única alternativa para a garantia desses direitos e que pode ser um limite à atuação dos poderes e às arbitrariedades do Estado, como a supressão do habeas corpus, o direito de ampla defesa, de não ser preso sem uma acusação formal e dentro do rito do devido processo legal etc.
Daí porque, como afirma Boaventura de Sousa Santos “Frente a esse panorama de sucessivos ataques às bases do Estado democrático de direito, não podemos nos silenciar”. Em casos de violências como a que ocorreu na invasão da Escola Nacional Florestan Fernandes “além de repudiar a absurda e desmesurada violência perpetrada contra a ENFF, as vítimas desse episódio desastroso de ataque policial e a tudo o que a escola simboliza” é necessário “reafirmar e apoiar os direitos do MST e dos demais movimentos sociais de se manifestarem e de se organizarem de forma livre, democrática e autônoma, pois entendemos que Lutar não é crime”. A manutenção do Estado de Direito é condição fundamental para ampliar os espaços democráticos.